terça-feira, 1 de janeiro de 2013

A retórica dos valores

À volta dos valores existe uma enorme retórica, entendendo-se aqui o termo no seu sentido pejorativo de palavreado, muitas vezes oco e apenas pomposo, para ludibriar as pessoas. Quando ouço falar em valores fico de imediato de sobreaviso, de certeza que vem chumbo grosso sob o manto diáfano das palavras bonitas!

O termo valor, sem especificação, é neutro; o valor é o preferível e o preferível para uns não é necessariamente preferível para outros. Portanto, quando se fala em valores é preciso sempre especificar pois todas as pessoas têm valores, todas as pessoas valoram só que as valorações nem sempre são coincidentes.

Aqueles que falam em valores em abstrato, como se de entidades eternas e imutáveis se tratasse, ligam-nos sempre às suas crenças religiosas e à sua fé, mas o facto de eu por exemplo não acreditar num ser transcendente não significa que não tenha fé, por exemplo, no ser humano e na sua capacidade de se aperfeiçoar. Contudo, ter fé num Deus ou ter fé na Humanidade são coisas diferentes. O Deus é bem mais apelativo, garante-nos o absoluto, enquanto a humanidade nos obriga a relativizar, a não esquecer os contextos em que a vida humana decorre.

A direita, todavia, é especialista no apelo aos valores como se deles tivesse o monopólio, e usa esse apelo para conseguir conquistar audiência; obviamente, todas as pessoas estão interessadas numa sociedade que preserve certos valores, e o truque da direita consiste em fazer o apelo sem especificar, ignorando ostensivamente que é preciso atender ao conteúdo dos valores e ao tipo de valores de que se está a falar.

Toda a gente defende valores, só que umas pessoas valorizam a liberdade e a autonomia, por exemplo, enquanto outras valorizam a obediência e a submissão; atribuir valor à vida humana tem aparentemente adesão universal, mas, por exemplo, no caso das mulheres e do aborto há quem valorize a vida da mulher em detrimento da vida do feto, se as circunstâncias assim o exigirem, enquanto outras dizem-se pomposamente pró-vida, escamoteando com tal proclamação que se estão nas tintas para a vida das mulheres reais de carne e osso que comparam grosseiramente à vida embrionária que poderá ou não vir a dar origem a uma pessoa.

Também o valor família é frequentemente invocado como arma de arremesso para atacar sub-repticiamente as mulheres que se dedicam a atividades profissionais e “descuram” os seus deveres verdadeiros! Todos os males sociais são atribuídos à degradação da vida familiar e com tão oportuno bode expiatório pode nada se fazer e manter arranjos sociais nitidamente desajustados, sobretudo para as mulheres, tanto a nível pessoal como a nível profissional.

Mais do que nunca, o discurso dos valores exige das pessoas atenção critica no sentido de analisarem a sua substância, detetarem contradições entre o que se diz e o modo como se atua. O assunto dos valores é demasiado importante para ficar entregue aos malabaristas das palavras.



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