domingo, 11 de março de 2012

A alma do zigoto

No século IV, no Concílio de Niceia, discutiu-se com “seriedade” e “pureza de intenções” a questão de saber se as mulheres tinham alma. No século XXI, em círculos religiosos, e ultimamente também em círculos políticos dos Estados Unidos, discute-se com igual “seriedade” e igual “pureza de intenções” a questão de saber se o zigoto tem alma. Quem discutia e discute são obviamente homens e ninguém levanta a questão do conflito de interesses, até porque nos nossos dias algumas mulheres fazem a fineza de concordar com eles dando força e respeitabilidade às suas decisões.

As almas - presume-se - são iguais perante O Todo-Poderoso que, por acaso, e é só por acaso, também é pensado à imagem do homem; têm todas igual valor e não se pode sacrificar uma em benefício de outra, se tal acontecesse o Todo-Poderoso ficaria muito ressentido. Claro que nisto da igualdade das almas continuo com a estranha sensação de que me estão a engrupir e que afinal deve haver algumas almas mais iguais do que outras, mas essas devem ser de homens e quem sou eu para me meter no assunto?!

Para além deste paralelismo de temas, há outras analogias entre o passado e o presente, e essas vão no sentido de indicar que a ”pureza de intenções” tem exatamente o mesmo conteúdo e a mesma substância que é o de colocar as mulheres no lugar que Deus e a Natureza lhes reservaram, num lugar em que a sua liberdade e poder para tomarem em mãos a própria vida é severamente limitado.

Esta questão da alma, o que quer que ela seja, e tenho a convicção de que é apenas um termo forte dotado de uma aura de absoluto para referir uma realidade fraca e relativa - a inteligência - é de extrema importância. Eu não sei como acabou a história do Concílio de Niceia mas suspeito que o resultado deve ter sido inconclusivo a avaliar pelo modo como as mulheres continuaram a ser tratadas. Também não deve ser fácil concluir acerca da alma do zigoto; mas é bom reparar que com o levantamento destas questões conseguiu-se o que à partida se queria: instalar a dúvida em muito boa gente que deverá agir em conformidade, estou a falar de legisladores, conselheiros de bioética e homens e mulheres em geral.

Se as mulheres não têm alma então verdadeiramente não são pessoas; se o zigoto tem alma então verdadeiramente o zigoto é uma pessoa. Como estamos na dúvida, vamos agir com cautela e não permitir que uma eventual alma sacrifique outra eventual alma porque afinal as almas são iguais e têm todas o mesmo valor; claro que o zigoto, não pode fazer nada à eventual alma da mulher, mas os seus procuradores podem.

Não se julgue que falar especificamente em alma, em vez de falar em inteligência, não é relevante; tem várias e assinaláveis vantagens para as tais pessoas de intenções piedosas. A alma é um termo de conotação religiosa, refere uma entidade distinta do corpo., uma entidade que lhe sobrevive. Além disso, os direitos das almas serão iguais - não se pode falar em mais e menos alma.

Falar em alma coloca a questão num campo muito favorável a quem pretende atingir o objetivo, à partida pouco digno, de limitar a liberdade de ação das mulheres; tem de se encontrar uma boa razão para tal malfeitoria e a alma serve às maravilhas essa função; se falássemos em inteligência, desejos aspirações, projetos, sentimentos, logo veríamos que não há qualquer semelhança entre os direitos da mulher e os direitos do zigoto; por isso é que é tão importante manter a terminologia e a respetiva semântica. E enquanto não se abandonar este território minado qualquer tipo de argumentação que tente defender que afinal há circunstâncias em que é preciso sacrificar o zigoto para conferir dignidade á mulher está votada ao fracasso. Os amigos do zigoto e inimigos das mulheres vão sempre conseguir rebater tal argumentação, a derrota da mulher e a vitória do zigoto estarão asseguradas.

5 comentários:

  1. Tomás de Aquino ressaltou o valor da razão humana e de conhecer como ela funciona, a começar pela importância de ordenar para entender..
    NAo não sou religiosa,aprecio a noção da evolução da mente.Os filósofos,a ciência.Tomas de Aquino foi um grande passo para a evolução das mntes religiosas(DE SUA ÉPOCA).falar de alma e corpo,para Tomas(unas),para Platão entidades separadas. Esta busca da compreensão do que somos é a maior das aventuras e a evolução da mente ,do conhecimento – é tudo. Ibfelizmente,a humanidade ainda vai aos trancos e barrancos disso.A mente vai usada mais para o poder o poder que pode isolar e escravizar..mas..o esforço DA INTELIGENCIA é sempre libertário.Abraço.

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  2. voce é biologa?eu nao entendo nada de reproduçao,gametas,zigotos(fui olhar no google!).zigoto e feminismo...fale mais.dei uma resposta mais na intençao filosofica...ou quase.(rs..)abraço.

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  3. Liv
    Não sou bióloga, apenas "filósofa". Para melhor comnpreensão acrescento:
    Conforme se pode ler na wikipedia: "Nos animais, o zigoto é denominado ovo e resulta da união de dois gametas: ovócito e espermatozóide. É uma célula totipotente, ou seja, é capaz de guardar as características genéticas dos progenitores, podendo gerar todas as linhagens celulares do organismo adulto."
    Ora o que acontece é que há quem defenda que o zigoto deve gozar do estatuto de pessoa ou pelo menos ter alguns direitos nesse sentido e assim se encontra argumento para impedir qualquer tipo de aborto pois esse ato iria contra os interesses de uma pessoa, no caso o zigoto.
    Ora de facto até podemos conceder que o zigoto humano é potencialmente um ser humano, mas essa mesma potencialidade encontra-se já no espermatozoide masculino e no óvulo feminino, e só falta começar uma campanha contra a eliminação de espermatozoides e de óvulos, num mundo de malucos e de fanáticos que no fundo, e as vezes mesmo à superfície, o que querem é aterrorizar e controlar as pessoas; se puderem avocar o beneplácito divino ainda se sentem mais confortáveis e atrevidos. E é aí que entra o conceito de alma….
    abraço, adília

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  4. Tiago
    Obrigada pelo comentário em que sucintamente disse tudo: luta covarde.
    Obrigada também por me ter permitido comnhecer o blog da escritora ... Vou tomar a liberdade de transcrever um post dela.
    abraço adilia

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