quinta-feira, 15 de julho de 2010

Maternidade, amor romântico e beleza, o que têm em comum?


A sacralização da maternidade e o mito do amor romântico foram dois instrumentos utilizados nos tempos modernos para minar as tentativas de emancipação das mulheres, na precisa altura em que elas começavam a tomar consciência mais aguda da situação de injustiça social em que viviam. É curioso constatar que estes dois instrumentos permanecem actuantes no mundo contemporâneo, complementados por um outro, igualmente eficaz, que é o mito da beleza feminina.

A «sagrada função da maternidade», tão exaltada por Rousseau como um dever cívico que as mulheres prestavam ao Estado, cumpre um objectivo dissimulado que é o de prender as mulheres à esfera doméstica, levando-as a secundarizar a sua formação intelectual e os seus projectos de carreira profissional. Ainda hoje, antifeministas, como Beverly Lahaye, fundadora do movimento «Concerned Women for America», com larga audiência e que consegue atrair milhares, para não dizer milhões, de mulheres norte-americanas, aconselha as jovens a casarem cedo - o que significa desistirem de estudos universitários - e a darem prioridade a maridos e filhos. Uma outra antifeminista, Laura Schlessinger, no seu Talk Show, não se cansa de fustigar as mães de filhos pequenos que trabalham fora de casa, aterrorizando-as com o papão de que se entregarem os filhos a creches e infantários vão contribuir para que estes não estabeleçam com elas laços afectivos fortes. Assim não é de admirar que ela e outras façam campanha contra todas as políticas progressistas e apoiem políticas de direita que recusam fundos do Estado para financiamento de creches e jardins-de-infância, precisamente as medidas que países mais progressistas e «amigos» das mulheres assumem como um dever da sociedade.


O amor romântico, ao apresentar a relação amorosa como o único veículo de realização feminina e o casamento e a maternidade como o «destino» das mulheres, também funciona como força alienadora ao serviço do statu quo. É curioso verificar como as séries televisivas, vulgo novelas, constantemente apresentam e reforçam este modelo, com as infalíveis e repetidas cenas de casamentos pomposos, em que a paixão é o ingrediente básico.


O mito da beleza consegue distrair as mulheres, sobretudo as mais jovens, de outras preocupações que não sejam a sua aparência física que é apresentada como o segredo do sucesso e do poder. Ser bela, atraente, preocupar-se com a aparência física é tudo o que têm de fazer para conseguirem poder. Mas, é caso para perguntar, se esta é a chave do poder, do poder real e não de um simulacro, porque é que, por exemplo, o influente vice-presidente norte-americano, Dick Cheney, não ia para o seu gabinete de trabalho vestido de bailarina?
O mito da beleza é de extrema importância, sobretudo quando outros mecanismos falham, porque a beleza é e sempre foi extremamente apelativa e dificilmente as jovens e as mulheres em geral lhe conseguem resistir. Não percebem quão ilusório é o «poder» que ela lhes confere que é um simulacro de poder porque poder significa agência e agência implica um sujeito que age e aqui elas estão a aceitar a posição de objectos que são olhados, não de sujeitos que olham, que fazem escolhas e interferem com o meio e as circunstâncias. Esquecem que a única coisa que verdadeiramente lhes pode dar poder é o conhecimento, e que, por isso mesmo, o acesso à instrução tem sido sistematicamente negado a grupos sociais que importa manter num regime de submissão. Exemplo, das mulheres que, até ao século XIX, estavam impedidas de frequentar as universidades, ou dos negros do período colonial que estavam proibidos de aprender a ler. Num caso e no outro, quem dominava percebia bem o potencial libertador do conhecimento.

Para enquadrar tudo isto, importa ainda lembrar uma teoria muito divulgada entre o senso comum que defende a complementaridade entre os sexos, insistindo na diferença, embora também no igual valor dos dois sexos.
Esta teoria acaba por funcionar como um mecanismo de discriminação das mulheres porque, ao insistir na diferença, remete-as para papéis que de facto a sociedade considera de estatuto inferior. Ser uma boa dona de casa e uma esposa e mãe desvelada pode ser muito bonito, mas de facto não é a mesma coisa que ser uma cientista de renome ou uma artista plástica de reconhecida capacidade criativa. É que, apesar de tudo, entre a natureza e a cultura, nós, seres humanos, já percebemos que foi a cultura que, para o bem e para o mal, nos distanciou da restante animalidade.

5 comentários:

  1. Adília,
    Não sabemos se vc já lêu ou não "O Segundo Sexo". Se não, para ilustrar algo que vc provavélmente já sabe, mas que é parte do tema que vc aqui escreveu, te oferecemos um presente feminista que, quem sabe, possa servir para um texto futuro q vc venha a escrever:

    "os custumes, as modas, muitas vezes são utilizados para separar o corpo feminino da transcendência (capacidade de superar os limites normais): a chinesa de pés deformados mal pode andar; as garras vermelhas das estrelas de Hollywood privam-na de suas mãos; os saltos altos, os colantes, as anquinhas, as crioulinas destinavam-se menos a acentuar a linha arqueada do corpo feminino do que aumentar-lhe a impotência (dos movimentos). Amolecido pela gordura, ou ao contrário tão diáfono que qualquer esforço lhe parece proibido, paralisado por vestidos incômodos e pelos ritos da boa educação, é então que esse corpo se apresenta ao homem como sua coisa".

    Beauvoir, Simone de; O Segundo Sexo; Terceira parte: Os Mitos.
    Saudações feministas

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  2. De facto li Beauvoir na minha ja longinqua juventude mas é sempre um prazer revisitá-la pela lucidez das ideias e clareza da expressão. Fico grata pelo vosso presente.
    Abraço, Adília

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  3. Adília, acerca dessa questão do mito do amor romântico e dos papeis sociais designados às mulheres em função dele, tenho um trabalho, ficado no romance "Senhora", do José de Alencar, que tenta dar conta da forma como as narrativas românticas delineiam um "perfil de mulher". Aí eu dou uma passada por Ema Bovary e cia. Caso tenha curiosidade, o link é o que segue:

    http://www.unioeste.br/prppg/mestrados/letras/revistas/travessias/ed_003/cultura/O%20PERFIL%20DE%20UMA%20MULHER.pdf

    (O PERFIL DE MULHER NO ROMANCE SENHORA, DE JOSÉ DE ALENCAR - Mariana Thiengo).

    Abraços.

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  4. Já li o seu texto, muito rico e interessante.
    Pena que a maioria das leitoras de romances e novelas vão ler os textos escritos por homens e na perspectiva masculina, como «assenting readers» e não como «resistig readers» e depois quando elas próprias escrevem romances e novelas muitas vezes acabam por reproduzir os modelos que conhecem porque não foram capazes de fazer a desconstrução que voce aqui tão brilhantemente apresenta.
    De qualquer modo penso que contributos como o seu são inestimáveis, porque vai haver sempre alguém que aproveita alguma coisa, embora a mainstream continue inabalável como podemos ver pelo lixo televisivo a que constantemente estamos sujeitas.

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  5. A esse respeito, penso que a contribuição da teoria (e não só da literatura) é inestimável, pois ela agencia novos paradigmas de leitura. Você tem razão em associar a posição de "assenting reader" à perspectiva masculina, pois é a posição mais cômoda, mais confortável de leitura (para os homens), e que facilita tremendamente o trabalho de dominação. Há um vídeo irônico a esse respeito que diz: "com certeza, se pudesse, o homem adoraria escolher o tipo de livro que a mulher ia ler." Acrescento: não só os livros como também os referenciais da leitura. Então o trabalho a ser feito é imenso.

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