sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Anti-sufragismo - retórica e persuasão

A reivindicação do voto para as mulheres foi formalmente apresentada em 1848, na Convenção de Séneca Falls, mas iriam ser precisos mais de 70 anos para a Constitução Americana a satisfazer. Claro que há muitos factores que explicam este sucesso tão tardio em relação a um direito elementar, mas, de entre esses, a capacidade retórica do movimento anti-sufrágio foi, em minha opinião, fundamental e deveria levar as feministas a repensarem as suas estratégias para evitar futuras derrotas, ou vitórias excessivamente adiadas.

As sufragistas tinham dois argumentos de peso: o argumento da justiça e o argumento da utilidade. O primeiro, baseado no princípio iluminista de que todos os homens – seres humanos – nascem livres e iguais em direitos, reivindicava o voto para as mulheres enquanto seres humanos a quem deveria ser reconhecido o direito de cidadania, isto é, a capacidade de participação na vida pública, em pé de igualdade com os homens. Mas as anti-sufragistas, aplicando as «regras da maioria» tentaram desvalorizar este argumento, mostrando que as mulheres que reivindicavam o voto eram um grupo minoritário e por isso a sua reivindicação era antidemocrática porque, se fosse satisfeita, iria impor a todo o sexo feminino aquilo que só alguns elementos pretendiam. Como evidência para corroborar este argumento citavam o referendo de Massachusets de 1895 em que a participação das mulheres tinha sido minoritária, para mostrar que o voto não interessava às mulheres, tanto assim que tinham tido oportunidade de votar mas tinham ficado em suas casas. Esta refutação do argumento apresentava a vantagem acrescida de descrever as sufragistas como pessoas agressivas que atacavam a sociedade democrática, distorcendo-se completamente a questão. Segundo as anti-sufragistas a situação das mulheres não era injusta, as sufragistas é que por inveja dos homens, por não conseguirem adaptar-se ao seu verdadeiro papel assim a percebiam. As sufragistas odiariam os homens não aceitando o papel que a natureza lhes reservara. E uma anti-sufragista da época podia retoricamente colocar a questão nestes termos:
«Terão todas as mulheres de suportar o fardo do voto, para conceder a algumas mulheres proeminência política?».

Com esta roupagem retórica, o voto deixava de ser um direito e passava a ser um fardo, uma responsabilidade, e aquelas que o reivindicavam faziam-no apenas para terem protagonismo, por inveja dos homens. A este tipo de refutação, chama-se, em linguagem popular, virar o bico ao prego: quando um direito é percebido como um fardo, não o assumir deixa de ser algo que a pessoa percepciona como injusto, bem pelo contrário. E aqui mais uma vez a retórica anti-sufragista numa frase curta e pregnante resumia magistralmente a tese defendida pelas anti-sufragistas: «O voto não é um direito negado é um fardo retirado»
Isto é, o voto deixava de ser uma questão de justiça e pretendia-se fazer passar a mensagem de que o exercício da cidadania acabaria por ser mais um fardo que algumas mulheres ambiciosas e carentes de protagonismo lhes queriam impor, quando na verdade o justo seria isentá-las desse «dever»; o exercício da cidadania bem como o cumprimento do serviço militar deviam incidir apenas sobre os homens; o governo era visto essencialmente como uma questão de lei e ordem e, assim como a ordem cabia por consenso aos homens (numa clara alusão ao serviço militar), o mesmo se deveria passar com a lei, isto é, com a governação.

A refutação do argumento da justiça obrigou as sufragistas a procurarem outro tipo de argumento, o da utilidade; com este teriam de mostrar/demonstrar que o voto na mão das mulheres seria um instrumento para mudar favoravelmente a situação das mulheres e a da própria sociedade. Mas as anti-sufragistas desarmavam este argumento desvalorizando os interesses das mulheres, exaltando o ideal da «verdadeira mulher» capaz de se sacrificar pelo bem-estar da família e realçando que o importante não era as mulheres e os seus interesses, mas sim o interesse e o bem-estar da sociedade como um todo. Desta forma ínvia e insidiosa, os interesses das mulheres deixavam de ser importantes e passavam a ser a mera expressão de mulheres egoístas e auto-centradas, como dizia um slogan da época: «Direitos das mulheres, sim, mas não à custa dos direitos humanos». De uma assentada, os direitos das mulheres deixavam de ser percepcionados como direitos humanos e eram menorizados como meros interesses que as verdadeiras mulheres, altruístas, abnegadas, sacrificavam generosamente aos interesses da sociedade como um todo.

As feministas foram ainda atacadas enquanto grupo, visando mostrá-las como extremistas e radicais, alinhadas politicamente com as esquerdas anarquistas ou socialistas, numa palavra elementos perigosos e desestabilizadores. Se as desacreditassem enquanto grupo extremista e radical, tornava-se mais fácil desacreditar as suas ideias e derrotar as suas propostas. No período em que decorreu a primeira guerra mundial, ainda deu muito jeito rotulá-las de antipatriotas pelo simples facto de algumas serem pacifistas e de terem apoiantes que também o eram, como aconteceu por exemplo com o filósofo britânico Bertrand Russell que desde a primeira hora apoiou o movimento sufragista na Grã-Bretanha. Em termos de retórica pode sempre apelar-se aos sentimentos mais profundamente enraizados na população e é disso exemplo a declaração proferida em 1915 num panfleto da New York Association em que o vermelho do socialismo é associado à cor amarela, identificativa do movimento sufragista:
«De facto, nós estamos ameaçados por um perigo vermelho que se esconde debaixo de uma capa amarela»

Esta é como sabemos uma estratégia recorrente de todos os contra-movimentos que, opondo-se à mudança, vêem papões em toda a parte e pretendem que as outras pessoas também os vejam, alienando assim a simpatia das pessoas para com aquelas que promovem a mudança.

As feministas eram também apresentadas e ridicularizadas como mulheres masculinizadas, agressivas, competitivas, não femininas, manobra que visava conseguir que a maioria das mulheres não se identificasse com elas. E, porque as feministas criticavam a instituição do casamento, acusavam-nas, pomposamente, de quererem substituir «os sagrados laços do matrimónio pela mera parceria de um contrato». Claro que se omitia muito convenientemente que os «sagrados laços do matrimónio» colocavam a mulher na dependência legal do marido a quem outorgavam o importante papel de chefe da família, podendo dispor dos bens da esposa e até de salários que ela eventualmente auferisse.

Todos estes aspectos permitiam que as anti-feministas acusassem as sufragistas de vários crimes de lesa pátria: pretenderiam arruinar o casamento, desconsiderando-o; dividiriam a família, criando discórdia, ao defenderem a competição com os homens; negligenciariam os seus deveres como mães e esposas, ao procurarem outras esferas de influência que não apenas a esfera doméstica. Tudo isto porque eram agressivas, desnaturadas, porque não eram «verdadeiras mulheres»!!
A partir deste quadro: não é de espantar que o voto tenha tardado tanto, é de espantar que ele tenha acabado por chegar! Se calhar isso aconteceu porque, afinal, como diz o ditado: «a justiça tarda, mas não falha!»

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