sábado, 11 de julho de 2009

Família e pensamento político

A teoria feminista não pode deixar de reflectir sobre o conceito de família pois foi no interior desta que a opressão das mulheres ganhou raízes e legitimidade. Tentando dar algum contributo para essa reflexão, vou hoje analisar o conceito de família na concepção clássica do poder político, prevalecente até à Época Moderna, e na concepção liberal, do que poderíamos chamar de primeira vaga do liberalismo político.

O pensamento político liberal, cujas raízes remontam aos séculos XVII e XVIII e às teorias de Hobbes, Locke e Rousseau, defende que a legitimidade do Estado, com as suas instituições de controlo social, pressupõe um vínculo contratual entre governantes e governados e decorre do consentimento destes últimos, que renunciam a determinados direitos que naturalmente possuem e os transferem para o Estado cujo objectivo será o de garantir a vida, a liberdade e a propriedade dos indivíduos. Para o pensamento político liberal, os seres humanos nascem livres e iguais em direitos.
Os pensadores que defenderam a Teoria do Contrato consideram que a autoridade do Estado emana e depende da soberania popular. Para Hobbes, os cidadãos desistem dessa soberania, transferindo-a voluntariamente para uma autoridade que deve ser forte e absoluta – o contrato é um contrato de submissão. Para Locke, os cidadãos apenas delegam o poder, que naturalmente possuem, numa autoridade que reconhecem enquanto esta defender os seus direitos. Segundo Rousseau, ninguém tem o direito natural para governar e a única autoridade legítima é a que resulta de acordo e convénio.

Esta teoria do contrato é inovadora e constitui um ponto de não retorno em relação a todo o pensamento político anterior, dominado pela tradição política aristotélica. Este pensamento político, que é costume designar por concepção política clássica e que foi o prevalecente até aos inícios da Época Moderna, opõe-se, em aspectos essenciais, à concepção liberal, pois não entende nem defende a liberdade e igualdade natural de todos os seres humanos e considera que a sociedade se encontra organizada segundo uma ordem hierárquica que, para alguns, procede da natureza e, para outros, a maioria, decorre da autoridade divina, revelada através dos textos sagrados.
De acordo com a concepção política clássica, a família, embora na sua origem seja anterior ao Estado, na sua finalidade, encontra-se ao serviço do Estado[1]. Deste modo, muito coerentemente, assim como no Estado há hierarquia entre governantes e governados, o mesmo se passa na família, em que o chefe – marido, pai e senhor de escravos ou servos, tem o direito de exigir obediência e serviço dos restantes membros da família.

Esperar-se-ia que a concepção liberal de poder político levasse o princípio da igualdade e liberdade formal de todos os indivíduos às suas consequências lógicas e defendesse um tipo de família em conformidade com esse princípio, mas tal não aconteceu. Os pensadores do contrato reconheceram e aceitaram uma bifurcação entre a esfera pública, na qual deveria reinar a igualdade e a liberdade para todos, garantindo o Estado direitos civis e políticos formais, e uma esfera privada – família, na qual as estruturas concretas de domínio e dependência sobreviveriam intactas. Por isto é que também se designa esta fase do pensamento político liberal por liberalismo patriarcal. Mas, como as incoerências e as contradições eram por demais evidentes, o liberalismo político acabou por evoluir em aspectos fundamentais, como terei oportunidade de vir a referir.

[1] É a família que existe para o Estado, não o Estado que existe para a família. Se pensarmos nos Estados Totalitários, percebemos bem como este princípio é importante para a sua legitimação.
A imagem não pode deixar de suscitar um comentário irónico: As mulheres, que lutaram pelos ideais do Contrato Social, afinal tiveram de se contentar com um «contrato sexual».

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